ELEMENTOS PARA UMA CORRETA INTERPRETAÇÃO DO CANTO GREGORIANO
Mons. Marcos Pavan – Belém do Pará, agosto 2015.
I – Pré-requisitos:
– Espiritualidade: não é meramente musica, é oração cantada.
– Formação litúrgica: o canto gregoriano não é fundo musical da celebração, é parte integrante da liturgia.
– Técnica vocal de base, suficiente para o hambitus limitado do gregoriano (hambitus é a distância entre a nota mais grave e a mais aguda de uma peça): para tutelar a propria saúde e para uma interpretação que seja digna do serviço litúrgico desempenhado pelo cantor, voltado para o louvor de Deus e a edificação dos fiéis.
– Um conhecimento mínimo da lingua latina é muito útil, embora não absolutamente necessário. O texto pode ser explicado peça por peça. É, porém, absolutamente necessário saber pronunciar o latim segundo a “pronúncia eclesiástica”.
– Conhecimento mínimo dos sistemas de notação e da teoria do canto gregoriano, sempre para uma boa interpretação: entender o que se faz e porque se faz.
– Adequada preparação das peças, para cantar bem e rezar bem. Só uma boa interpretação pode haurir todo o significado espiritual do texto sagrado. Quando uma peça está acima da capacidade de um coro, pode-se optar por melodias mais simples, como as do Graduale Simplex. É melhor uma peça simples bem executada (simplicidade no gregoriano não significa mediocridade, pelo contrário) do que uma peça complicada mal executada. Uma peça do repertório autêntico gregoriano nunca é mediocre, já a sua interpretação pode sê-lo.
II – Indicações gerais de interpretação:
– O canto gregoriano é essencialmente ligado ao texto e ao texto latino (é co-natural ao latim). O texto vem sempre em primeiro lugar, e a melodia deve servi-lo. A melodia tem por objetivo ornar, interpretar, comentar o texto e facilitar a sua assimilação. É a melodia que deve adaptar-se ao texto, nunca o contrário (por exemplo, “engolindo” uma sílaba para manter uma hipotética isocromia do tempo fundamental). A estrutura e inflexões da melodia são modeladas sobre as divisões e o significado do texto.
– Não existe uma interpretação “standard” do gregoriano, muito depende de como é composto o coro: fatores como idade, sexo, índole vocal, nacionalidade, acústica da igreja onde se canta etc., têm grande influência. Mas existe um mínimo denominador comum que pode e deve ser adotado por todos:
– sempre humilde, legado e suave, mas sem afetação e “romanticismos”;
– nunca grosseiro ou gritado, mesmo quando exprime alegria e louvor.
– Cantar o gregoriano é sempre uma oração e um serviço, o que exige:
– humildade de ânimo, sem protagonismos;
– discreção de comportamento e de emissão;
– perfeição da pronúncia e da interpretação.
– O canto gregoriano deve nascer do silêncio e voltar ao silêncio. Se executado em concerto, deve-se criar um clima apto (eventualmente dando informações de caráter espiritual e litúrgico e evitando os aplausos entre as peças). Antes de começar é necessario um momento de introspecção para os cantores.
– Buscar sempre a homogeneidade, a perfeita unidade, cantar “com uma só voz”: o canto em uníssono exprime e realiza a unidade do louvor que sobe do único Corpo Místico de Cristo – uma só fé, um só coração, uma só voz.
– Pronunciar bem as consoantes duplas e finais (sem anasalar a “m” e a “n”) e buscar sempre a perfeita inteligibilidade do texto.
– Cantar “legato” mas sem “glissar” nos intervalos.
– Repercutir as notas em uníssono com uma leve pulsação da voz, sem fazer “staccato”.
– Respeitar os silêncios segundo a hierarquia das barras e a pontuação do texto.
– Escolher os pontos certos para respirar, respeitando a unidade indissolúvel dos neumas e o sentido do texto. Quando necessário usar a respiraçao coral (alternada).
– Atenção à afinação e, sobretudo, ao ritmo: não cantamos sílabas nem palavras soltas, cantamos frases gramaticais e musicais. Frasear é essencial para não reduzir o canto gregoriano a “canto-chão”. Cada frase musical possui um ponto culminante, que deve ser identificado: para ele tende o movimento inicial da frase e, depois dele, a melodia dirige-se, mais ou menos diretamente, ao repouso.
– Respeitar, o quanto possível, a acentuação das palavras, sobretudo nos cantos silábicos.
– Terminar as frases sempre piano! Os últimos sons devem ser uma ponte para o silêncio.
III – Observações sobre o ritmo gregoriano:
– É a questão mais espinhosa e menos resolvida desde a restauração gregoriana iniciada no séc. XIX, mas é a única que deve ser enfrentada também pelos cantores e não somente pelos editores dos livros de repertório.
– O ritmo gregoriano é composto, como qualquer outro ritmo, da alternância entre tensão e repouso, arsis e thesis. No gregoriano, porém, essa alternância não é nem regular nem mensurada. Daí a dificuldade de executar bem o aspecto rítmico.
– Hoje os gregorianistas são unânimes no afirmar que é preciso seguir a semiologia para uma correta interpretação do ritmo.
– A essa unanimidade teórica, porém, não corresponde uma prática uniforme. O modo de interpretar as indicações da notação semiológica continua muito subjetivo e, às vezes, arbitrário.
– Os grandes inimigos de uma interpretação equilibrada do ritmo e da semiologia são o preconceito (não conheço e não gosto) e a mentalidade ideológica (se a realidade não se adapta à minha visão teórica, se na prática ela não funciona, pior para a realidade).
– Um erro muito comum, mas nem por isso menos grave, é concentrar-se somente nas indicações da semiologia (ritmo analítico), esquecendo que a unidade maior é criada pela frase (ritmo sintético). A semiologia deve enriquecer o fraseado, não mortificá-lo.
– Esquematicamente, uma frase parte do silêncio, cresce em tensão à medida que se aproxima do seu ponto culminante e, depois dele, perde-a gradativamente até voltar ao silêncio (“arco da frase”). Quanto mais longa for uma frase, mais esse movimento geral de “tensão – ponto culminante principal – repouso” será entrecortado por pequenos movimentos de “tensão-ponto culminante secundário-repouso”, que deverão ser executados, porém, sem perder de vista o movimento geral: é a “respiração” da música!
– Todo som musical é composto de altura, duração e intensidade. Na música moderna esses elementos são indicados separadamente, no gregoriano tudo é resumido no sinal neumático.
– NEUMA É A SÍNTESE DE TODAS AS NOTAS QUE RECAEM SOBRE UMA ÚNICA SÍLABA. A cada sílaba, portanto, corresponde um único neuma, que pode ser composto de 1, 2, 3… 20… notas!
– Outra noção fundamental para uma boa interpretação é a de VALOR: no gregoriano, dinâmica (intensidade dos sons) e agógica (velocidade, movimento) são realidades inseparáveis, sintetizadas na noção de “valor” da nota. O valor de uma nota é a sua característica de intensidade sonora e duração, determinada pelo seu contexto no interior do neuma, da palavra e da frase. O VALOR DE UMA NOTA É SEMPRE UM POUCO SUBJETIVO (o quanto uma nota será mais intensa ou mais longa depende da sensibilidade do intérprete) MAS NUNCA ARBITRÁRIO (um som longo não pode se tornar um som breve e vice-versa, um som intenso não pode se tornar um som suave e vice-versa), segundo os princípios gerais do ritmo e as indicações da semiologia. Esquematicamente podemos dizer que uma nota pode ser: longa e intensa, curta e intensa, longa e suave, curta e suave, com infinitas possíveis nuances.
– O canto gregoriano nasce da palavra para servir à palavra, portanto é natural que o seu tempo fundamental corresponda à duraçao de uma sílaba:
– Unidade de base: tempo silábico médio – corresponde a uma sílaba de duração natural média: DO-MI-NI, FI-LI-US;
– Tempo silábico aumentado – corresponde a uma sílaba de duração natural longa: NON CON-FUN-DEN-TUR, lo-QUEN-TUR, ae-TER-NAM;
– Tempo silábico diminuído – corresponde a uma sílaba de duraçao natural breve: E-A, fili-I;
– Tempo silábico restituído – seria um tempo breve, mas uma indicação da semiologia ou a situação da nota na frase “restituem” à nota a duração de um tempo silábico médio.
– Nos neumas desenvolvidos (duas ou mais notas sobre uma mesma sílaba), a cada nota corresponderá um tempo silábico diminuído, mas indicações da semiologia (alterações na grafia dos neumas, cortes neumáticos, letras significativas etc.) ou a sua situação na frase podem fazer com que algumas notas devam ser cantadas come se a cada uma delas correspondesse uma sílaba média (tempo silábico restituído).
– ATENÇÃO: a existência de um tempo fundamental não significa que devemos sacrificar a duração natural de uma sílaba para fazê-la entrar num tempo sempre igual (isocromia do tempo fundamental): CADA SÍLABA DEVE SER BEM PRONUNCIADA E CANTADA RESPEITANDO A SUA DURAÇÃO NATURAL!
IV – Indicações rítmicas na notação quadrada:
– Todos os sinais que indicam alongamento do tempo de uma nota (punctum mora vocis, episema horizontal) devem ser SEMPRE INTERPRETADOS NO CONTEXTO DA PALAVRA E DA FRASE: NÃO EXISTE UMA REGRA QUE DETERMINE QUE A NOTA PONTUADA OU EPISEMÁTICA DEVA DURAR O DOBRO OU O TRIPLO DO TEMPO FUNDAMENTAL.
– No gregoriano não existe proporçÃo fixa entre notas longas e curtas: trata-se de nuances. Cabe ao intÉrprete, segundo o contexto, estabelecer com competÊncia tÉcnica e bom gosto a duraçÃo das notas LONGAS.
– O “ictus” (traço vertical) colocado sob algumas notas deve ser IGNORADO. Servia para indicar o ritmo segundo o antigo método de Solesmes, hoje completamente abandonado. Nas edições mais recentes indica a sinerése ou a diérese de neumas, mas não deve influir de modo algum na interpretação rítmica.
V – Elementos fonéticos do latim eclesiástico :
– Latim clássico: o ritmo da palavra e da frase é dado pela alternância entre sílabas convencionalmente consideradas longas e breves (como indicado nos dicionários de latim). O acento é melódico (a sílaba acentuada é mais aguda mas não mais intensa).
– Latim eclesiástico (usado pelo gregoriano): a duração das sílabas não é convencional, mas natural (segundo o tempo que levo para pronunciá-las), o acento é de intensidade (a sílaba acentuada é mais intensa, mais apoiada).
– Mas alguns elementos do latim clássico sobrevivem no latim eclesiástico. Por exemplo, a tendência a colocar o acento da palavra numa nota mais aguda (com muitas exceções) ou a presença de acentos secundários. Tal influência revela-se também na tendência a colocar o acento principal do inciso ou da frase no agudo (ao contrário do canto galicano, por exemplo, que tende a colocar o acento na região grave da melodia).
– As palavras latinas são paroxítonas ou preparoxítonas, não existem palavras oxítonas (aquelas que o seriam, porque de origem estrangeira, têm o próprio acento deslocado, por exemplo: Sión torna-se Síon, Ierusalém torna-se Ierúsalem). Existem, porém, palavras monossílabas.
– A “corrente de acentuação” (útil sobretudo nos recitativos, na salmodia e nos cantos silábicos):
1 – O acento da palavra é o polo ao qual tendem as sílabas pré-tônicas (fase de prótase ou crescimento) e, depois dele, as sílabas pós-tônicas perdem tensão (fase de apódose). A sílaba acentuada é mais intensa mas nunca deve ser cantada de modo agressivo, com um golpe da voz, mas de forma “arredondada”, como o cume de uma colina.
2 – A sílaba final, ainda que sempre suave, deve ser cantada com muita atenção, pois nela termina todo o movimento da palavra. Os dois polos rítmicos da palavra são, portanto, a sílaba acentuada e a sílaba final.
3 – Se a fase de prótase é composta de duas ou mais sílabas, essas serão, alternadamente, átonas e subtônicas. O canto gregoriano faz largo uso desse acentos secundários (por exemplo, nas candências salmódicas). Tê-los presente ajuda muito, por exemplo, no canto de recitativos. Para determinar os acentos secundários basta partir da sílaba tonica e ir para trás, alternando sílabas átonas e acentos secundários: ius-TI-fi-CA-ti-Ó-nes, CON-glo-RI-fi-CÁ-tur, U-ni-GÉ-nite.
4 – Os acentos secundários não devem ser cantandos com maior intensidade, apenas “sentidos”, facilitando desse modo o proceder juntos no canto.
VI – Método para preparar uma peça de canto gregoriano:
– Identificar o caráter litúrgico da peça: sua colocação e significado na celebração, no ano litúrgico etc.
– Identificar o tipo de composição: para a assembléia, para o solista, para a schola, canto alternado entre schola e assembléia ou entre dois coros, responsorial, recitativo etc.
– Identificar o estilo da composição: silábico, semi-ornado, ornado (melismático).
– Estudar o texto: significado e pronúncia (atenção à acentuação das palavras).
– Analisar a modalidade (notas estruturais: finalis e dominante, modo autêntico ou plagal, peculiaridades modais da peça em questão: quais as cordas mais usadas?).
– Escolher a altura absoluta da peça (com qual nota começar). Geralmente não se deve cantar acima do RE3 (RE4 para mulheres e meninos), senão nas partes reservadas ao solista ou à schola, como os versículos de Aleluia ou Gradual, para evitar uma emissão forçada, mas isso pode variar de coro a coro.
– Cantar o modo na altura escolhida para a peça: isso ajuda a fixar no ouvido as notas estruturais (final e dominante) e a ordem dos intervalos.
– Solfejar com nome de nota (dó móvel).
– Solfejar com uma sílaba que favoreça a impostaçao da voz (nu, lo… depende do tipo de voz).
– Dizer o texto a voz alta e bem pronunciado, para perceber o ritmo natural das palvras e dos acentos.
– Cantar com o texto, respeitando os elementos gerais do ritmo e a acentuação das palavras.
– Analisar a semiologia quando disponível. Analisar as frases musicais.
– Cantar apenas com as vogais do texto para melhorar o legato, sobretudo nas composições silábicas.
– Cantar o texto prestando atenção para bem pronunciar as consoantes (inteligibilidade do texto), para respeitar o ritmo semiológico e dando muita importância ao fraseio, que dá- unidade à peça e a faz “respirar”.